domingo, 14 de julho de 2013

Um quadro preocupante, por Ruy Fabiano

A ignorância política – o desconhecimento dos mais elementares princípios da separação dos poderes da República e do funcionamento das instituições - é um dos fatores determinantes da crise de representação, que indispõe, neste momento, a sociedade brasileira e seus governantes.

Isso explica reivindicações conflitantes nas manifestações de rua. Criticam-se os partidos políticos, a qualidade dos serviços públicos, o governo e a carga tributária, mas, simultaneamente, pedem-se mais políticos, mais governo, mais carga tributária.

Pegue-se uma, entre as muitas exigências expostas nas ruas: a tarifa zero nos transportes públicos. Sua adoção pressupõe a estatização plena do setor, o que significa mais governo, mais políticos, mais chances à corrupção, mais tributos.

Há também, explícita, a ideia de que o governo federal pode tudo: prender políticos corruptos, mudar as leis, refazer, por decreto, o país. Não se tem a mais remota ideia de como funcionam os poderes e os limites de cada qual. Não é casual que a presidente da República seja a mais penalizada pelos manifestantes.




É como se dela tudo dependesse. E ela reage como se assim fosse, mandando pacotes com propostas improvisadas e até exorbitando de sua jurisdição, ao propor plebiscito para a reforma política ou mesmo a convocação de uma assembleia constituinte (da qual teve de recuar, por inconstitucional).

Mesmo segmentos em tese mais preparados exibem essa espantosa ignorância. Há dias, chegou às mãos da presidente Dilma Roussef uma “Carta Pública dos Povos Indígenas do Brasil”, preparada por ONGs que cuidam da causa, com destaque para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

São, pressupõe-se, entidades especializadas, que deveriam conhecer os princípios fundamentais de organização e funcionamento do Estado. Mas exibem a mesma ignorância flagrada nos manifestantes de rua. Pedem (ou exigem) à presidente o que não está a seu alcance atender.

Exemplo: “Não admitiremos retrocessos na garantia dos nossos direitos, por meio de iniciativas legislativas (...)”, diz a carta, em certo trecho. Ora, a presidente não pode impedir iniciativas legislativas (aliás, ninguém).

Pode, no máximo, se aprovadas, vetá-las, cabendo, no entanto, ao Legislativo o direito de derrubar-lhe o veto.

No sistema presidencialista, Executivo e Legislativo só podem ser dissolvidos por dois meios: golpe de Estado ou eleições. Excluindo-se o primeiro, sempre uma tentação a grupos radicais, resta o segundo. O Congresso que aí está, goste-se ou não, foi eleito pelos mesmos manifestantes que o querem agora derrubar. Mas, para tanto, só há um meio: o golpe.

No sistema parlamentarista, em que o Congresso é eleito por até quatro anos, prevê-se sua dissolução pela via democrática, em situações de crise de governo, com a convocação de novas eleições.

O parlamentarismo, no entanto, foi rejeitado em dois plebiscitos (1961 e 1993), o que faz supor que a sociedade brasileira apoia o sistema presidencialista, adotado desde a Proclamação da República. Será? Improvável.

A complexidade do tema e a maneira ligeira e manipulada com que, nas duas ocasiões, foi exposto ao público fazem supor que o eleitor não sabia exatamente no que estava votando.

Em ambas as ocasiões, o público não foi informado da natureza e funcionalidade de cada um dos sistemas, apresentados sob um viés ideológico, que comprometeu a consulta.

Em 1961, até a Guerra Fria entrou em pauta. Em 1993, embora ela já não estivesse formalmente em pauta, o conteúdo não foi diferente. Houve até um fato inusitado: o PT, em seu primeiro programa no horário gratuito, pela voz de Lula, defendeu o parlamentarismo. Do segundo em diante, se opôs.

Nas ruas, o povo reclama das consequências, mas ignora – e, portanto, não vai às causas. O Congresso, beneficiário do sistema em vigor, investe num varejo que não muda nada e nem efeito sedativo chega a ter. Derruba um projeto polêmico, aprova outro, de índole demagógica, e espera assim acalmar o público.

A presidente providencia pacotes, faz discursos, afrouxa os cordões da economia e busca ganhar tempo. O Judiciário, por sua vez, manda prender um deputado, cuja sentença condenatória lá estava há anos, promete acelerar o mensalão e coisas do gênero. Ninguém vai à raiz do problema.

O público percebe o jogo de cena, mas ignora a essência da questão e pede mais Estado, que, assim, protagoniza simultaneamente o papel de herói e vilão da mesma história.

O governo cooptou as principais entidades da sociedade civil, que ao tempo da ditadura foram fundamentais para a reconquista da democracia. Por aí, não há muito o que esperar. A sociedade civil organizada está aparelhada. Em tal contexto, amplia-se o raio de ação de aventureiros e golpistas.


Ruy Fabiano é jornalista.
Publicado originalmente no Blog do Noblat de 13/7/2013

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