sábado, 3 de agosto de 2013

As palavras, seus significados, ou a falta deles – uma questão de poder, por Marisa Gandelman

O significado das palavras não é fixo no tempo e no espaço. O processo através do qual, ao longo do tempo, o senso comum vai  atribuindo diferentes significados aos termos é complexo e sua dinâmica é intensa e contínua. Trata-se de um   processo social e como tal pode ser entendido como uma construção em andamento, uma obra em progresso.

Recentemente, por inúmeras razões que não podem ser reduzidas aqui a uma lista exaustiva, algumas palavras vem ganhando importância no vocabulário cotidiano. Esses termos, de tanto que são usados, acabam se separando de seus significados, que ainda que não sejam únicos e fixos são essenciais para que deles sejam produzidos os conceitos que precisamos para explicar a realidade. 

Uma palavra que serve de exemplo para mostrar o esvaziamento resultante da separação da palavra e o significado que o senso comum atribui a ela é  "transparência". Hoje lemos e ouvimos essa palavra varias vezes por dia e parece que a imprensa a utiliza exaustivamente com a finalidade de reduzir a alguma coisa que tem um valor intrínseco, de forma que a pessoa ou organização que não a possui se sente envergonhada. É como ser feio, ou defeituoso, ou fora de moda.






Assim, reduziu-se o sistema de gestão coletiva de direitos autorais de execução pública de música a uma única questão vital: ser ou não ser transparente. Possui, ou não, esse atributo? Não possui? Será então punido, ficando sob a supervisão de um órgão do Poder Executivo, que nada sabe a respeito da complexa atividade de gestão coletiva de direitos de execução pública, que não esclarece, nem define ou dialoga a respeito do significado do termo transparência, muito menos questiona a compreensão do termo pelo órgão responsável pela supervisão, sua aplicação, gestão coletiva de direitos autorais e à atividade do órgão de supervisão.

Uma palavra vazia de significado, utilizada à exaustão em um discurso também  vazio de significado, se transforma em dogma que ninguém explica, mas justifica a adoção de um plano, traduzido em forma de lei imposta de cima para baixo, que pretende forçar a estrutura e a máquina existente e em funcionamento através de um Escritório Central – Ecad – que tem o monopólio da atividade estabelecido por Lei, a se comportar de uma certa maneira que a nova lei determina ser transparente e eficiente. 

No entanto, ninguém sabe, ninguém explica por que passaria a ser transparente e eficiente e por que o sistema existente e em funcionamento não o é e por isso tem de ser punido.

Eis que a Senhora Transparência vai ao encontro da colega Competição com o seu dogma ultra-liberal da concorrência e juntas decidem submeter os criadores e demais titulares de direitos autorais de música aos seus poderes e desejos. É isso mesmo que os interessados (titulares de direitos autorais de música) querem? Discurso vazio, ou conversa fiada de quem não conhece o assunto. 

No regime associativo, a associação é a polis, o local aonde se faz a política, se define o justo e o verdadeiro e se produz significado para os termos. Os autores se reuniram há cerca de 150 anos, como consequência do humanismo revolucionário que dominou o século dezenove e promoveu a construção de significados que deram a certos termos o conteúdo necessário para a elaboração dos conceitos que norteiam as sociedades de autores que operam no mundo inteiro a gestão coletiva de direitos autorais.

Nesses quase dois séculos desenvolveu-se inteligência, conhecimento e capacidade de organizar, catalogar, armazenar, recuperar, administrar, etc., os dados que as sociedades de autores produzem, a respeito das obras e titulares que representam, sem os quais não é possível monitorar e controlar a utilização das obras musicais.

As sociedades de gestão coletiva pertencem aos autores e demais titulares de direitos autorais, portanto devem ser supervisionadas por eles. Os titulares devem se organizar na forma dos estatutos de suas sociedades para formarem um corpo de supervisão, eleito de tempos em tempos, que define, aponta e contrata o corpo operacional que cuida da operação propriamente dita, presta contas ao corpo de supervisão, mas não tem voto. Os titulares de direitos autorais podem até mesmo fazer a revolução dentro de suas associações alterando seus estatutos para que reflitam o entendimento dos que supervisionam a organização à qual pertencem.

Assim se faz no mundo inteiro, sempre buscando formas de oferecer uma gestão de melhor qualidade por custos menores, isto é, mais eficiente e também mais transparente, por estar mais perto do titular, do dono do negócio, desde que ele esteja disposto a dar sua efetiva participação ao corpo de supervisão.

Essa possibilidade jamais foi debatida aqui. Não há espaço para o diálogo e nem para o desenvolvimento de conhecimento e melhorias para todos. Há apenas um pouco mais do mesmo. 

O Senado Federal, com aprovação da Câmara dos Deputados, enviou para a sanção presidencial um Projeto de Lei que não tem qualquer indício de que vai entregar aquilo que critica faltar no atual sistema que precisa ser punido porque alega-se não possuir os atributos essenciais, especialmente a tão famosa "transparência". 

Dizemos um pouco mais do mesmo porque não passa de disputa de poder combinada com a disponibilidade de alguns artistas famosos de participarem do jogo político do governo brasileiro que carece de significado e conteúdo, que se alimenta de si mesmo, vive para sua própria sobrevivência, não sabe o que é o espírito público.

As consequências imediatas da votação em tempo recorde do PLS, sem debate, sem diálogo, portanto, sem transparência, parecem óbvias. O poder se transfere das mãos dos que hoje dirigem as associações que integram o ECAD para as mãos dos que estiveram ao lado dos políticos que não sabem o significado do termo diálogo no regime democrático, artistas que, por sua vez, transferiram  antecipadamente para o Poder Executivo, através do Ministério da Cultura, os poderes conquistados nesse processo de votação em tempo recorde.

Transferência de poder e autoridade também vazia de conteúdo, uma vez que não dominam, ou nem sequer conhecem, um pouco da complexidade da gestão coletiva, tanto é que proíbem a licença em branco consagrada no mundo inteiro e determinam o uso de novos tipos de licenças mais custosas e complexas, caminhando na contra mão da tendência mundial. 

Sociedades de autores, com o apoio de seus associados se dedicam ao desenvolvimento de ferramentas para diminuir os custos de transação e promover economia de escala. O caminho adotado pelo PLS promove a mudança do controle da estrutura para as mãos do Poder Executivo, porém não propõe inovação alguma em benefício dos criadores. Ao contrário, propõe mudanças que tornam a operação mais custosa, restringem os direitos dos titulares e propõe critérios de licença que certamente resultarão excludentes e restritivos pois provocarão a diminuição do universo de titulares que poderá se beneficiar da arrecadação e distribuição em conjunto de direitos de execução pública de música.


Marisa Gandelman, doutora em relações internacionais, é diretora-executiva da União Brasileira dos Compositores (UBC). 

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